Seja nos versos de Conceição Evaristo, nos romances de Jane Austen ou nas páginas da Bíblia, moradores de Anápolis estão descobrindo nos livros um recurso terapêutico poderoso. A prática da biblioterapia — que consiste no uso da leitura para promover bem-estar mental e emocional — tem conquistado espaço na rotina de quem busca consolo, inspiração e compreensão em meio aos desafios cotidianos.
A prática, que mistura literatura e saúde mental, não é exatamente nova, mas ganhou novo fôlego nos últimos anos, sobretudo com o crescimento do interesse por terapias complementares. Em Anápolis, histórias de transformação pessoal por meio da leitura são cada vez mais frequentes.
A produtora cultural, engenheira florestal e poetisa Milena Coelho conta que foi por meio da poesia que encontrou acolhimento para questões internas que ainda não sabia nomear. “Na adolescência, ainda buscando me aproximar da leitura, sentia dificuldade em me dedicar a narrativas longas”, lembra.
“Acredito que essa dificuldade, hoje compreendida em termos de déficit de atenção e hiperatividade, gerava frustração, como se eu não me encaixasse no perfil de leitora idealizado. Foi nesse contexto que a poesia surgiu, ou talvez me encontrou”, compartilha Milena.
A leitura de "O Guardador de Rebanhos", de Alberto Caeiro, foi o ponto de virada. “Compreendi que a poesia não exigia uma linearidade, o que me libertou de uma sensação de inadequação. Essa flexibilidade se harmonizava com a minha forma de sentir o mundo”, afirma.
O impacto da poesia na vida da anapolina foi tão grande que ela passou a escrever versos como forma de compreender seus próprios sentimentos. “A poesia me proporcionou um espaço de identificação, onde me encontrava e era encontrada”, diz.
Para Milena, a leitura poética vai além do prazer estético. É ferramenta de introspecção e refúgio. “A poesia, para mim, oferece um refúgio. Quando me sinto confusa, angustiada ou diante de um dilema, retorno aos versos como quem busca um espelho. Como se fosse um oráculo.”
A poetisa também ressalta que nem sempre a poesia traz respostas, mas sempre traz alívio. “A capacidade de encontrar descanso é fundamental. A poesia me ensinou a desacelerar o pensamento linear e a prestar atenção aos silêncios.”
Essa conexão profunda com os versos moldou a forma como ela lida com os desafios da vida. “Ela me ajudou a compreender que nem tudo exige uma solução imediata. Ao ler poesia, somos convidados a fazer uma pausa.”
Já a pedagoga e cantora Maressa Gonçalves encontrou nos romances a chance de viver outras vidas e compreender a sua própria trajetória. “Talvez um lado um pouco controverso meu é gostar de deixar a minha mente sair da realidade. Minha fuga favorita é a leitura.”
Durante a adolescência, ela foi apresentada à "Série Cris", coleção de romances cristãos, por sua mãe. “Li no momento exato, o momento em que começamos a nos desenvolver e despertar para o que é de fato a vida, o amor, relacionamento, amizade. Me senti compreendida e acolhida por eles.”
Para Maressa, os livros marcaram fases da vida e se tornaram porto seguro emocional. “Tenho aqueles livros conforto que, quando me sinto saudosa, ‘adulta demais’ e sinto falta de minha adolescência, meus tempos de escola, corro pra eles.”
Ela cita títulos como Orgulho e Preconceito, Jogos Vorazes, Divergente e A Seleção. Mas também recorre à literatura clássica e crítica, como Senhora, Memórias Póstumas de Brás Cubas e A Revolução dos Bichos.
A experiência mais marcante, no entanto, veio com a leitura de A Filha do Reverendo, de George Orwell. “Me atingiu ainda mais por eu ser filha de pastor e também me fez agradecer a Deus pelos pais que tenho e por ter nascido em um cenário tão diferente do descrito ali.”
Mas é a Bíblia o livro mais importante para ela. “A Bíblia, com toda certeza, é o livro mais sensacional para mim, pois em momentos de desespero, dor, angústia, alegria, é nele que encontro respostas para perguntas que eu nem sabia que tinha.”
Especialistas ressaltam que a biblioterapia não substitui tratamentos clínicos, mas pode ser uma aliada importante. “A leitura pode ser feita no tempo da própria pessoa. Ela pode pegar um livro para ler quando se sentir emocionalmente pronta e parar de ler se estiver sobrecarregada”, diz o médico britânico Andrew Schuman.
A ciência também aponta que a leitura imersiva pode ajudar a aliviar o estresse, melhorar o humor e estimular a empatia. Mas, como lembra o pesquisador James Carney, “a ideia de que os livros são um remédio universal é simplesmente falsa”. Os efeitos dependem do perfil do leitor e do tipo de envolvimento com a leitura.
Para Milena Coelho, o poder da poesia está justamente em sua subjetividade. “A poesia atinge esferas que a linguagem cotidiana não consegue alcançar. Sua essência reside em lacunas, símbolos e imagens que dialogam com nossa alma.”
Ela compara a poesia à música: “Cada indivíduo interpreta de maneira única, mas todos experimentam uma ressonância emocional. O consolo pode vir não apenas da leitura de poetas renomados, mas também da troca com poetas e artistas próximos.”
Ao concluir sua fala, Milena sintetiza o espírito da biblioterapia: “Acredito que a poesia é encontro, é cura, é pertencimento. É a gente se reconhecer nos versos, mas também se surpreender com eles… Todo poeta tem um quê de ‘doido’, no melhor sentido: de sentir demais, de ser visceral. E é nesse transbordar que, muitas vezes, a gente se encontra [com a gente mesmo e com o outro].”