O novo projeto de requalificação do Centro de Anápolis pode ser um divisor de águas para o futuro urbano da cidade - mas, se ignorar o calor seco, a cultura carrocêntrica e os frequentadores tradicionais, corre o risco de virar mais uma promessa mal executada. Quem faz o alerta é a arquiteta e urbanista Maria Natália Alcântara, mestre em Planejamento Urbano e Políticas Públicas pelo Politecnico di Milano e com trajetória internacional pelo programa Erasmus Mundus 4Cities.
Anapolina de origem, Maria Natália conhece a cidade por dentro e vê com entusiasmo a proposta do edital lançado pela Prefeitura, mas adverte: “sem resiliência para enfrentar a resistência cultural inicial, nenhuma mudança estrutural acontece”.
A referência da arquiteta é clara: reduzir a presença de carros e ampliar as calçadas é uma diretriz alinhada com as tendências globais de urbanismo humano, contudo esbarra no apego histórico de Anápolis ao automóvel. “A cidade foi moldada em torno do carro”, resume em entrevista ao DM Anápolis.
Para ela, o caso de Curitiba, que enfrentou protestos ao implantar o calçadão da Rua XV de Novembro, mostra que a rejeição inicial é parte do processo. “O sucesso depende da coragem do poder público em sustentar a mudança", argumentou.
Uma das exigências do edital é manter ou implantar até 1.500 vagas de estacionamento, o que, segundo Maria Natália, exige cautela. “Isso não pode comprometer a qualidade dos espaços públicos. Soluções como estacionamentos verticais ou subterrâneos podem ser viáveis, mas devem ser transitórias, prontas para serem convertidas em espaços culturais ou de lazer futuramente, avalia. Ela cita Paris como exemplo, onde antigos estacionamentos deram lugar a bibliotecas e centros comunitários.
Outro ponto sensível está no clima. Com verões longos e secos, Anápolis exige projetos que protejam os pedestres do calor. “Sem sombra e sem conforto térmico, os espaços públicos ficam desertos”, afirma a especialista. A recomendação é apostar em arborização intensa com espécies do Cerrado, pavimentos com alta refletância térmica e corredores contínuos de sombra e ventilação. “Sevilha instalou toldos urbanos nas ruas comerciais. Goiânia investe há anos em arborização. São medidas que criam microclimas e incentivam a permanência das pessoas", cita.
A segurança também aparece no edital como demanda da população. Aqui, Maria Natália propõe uma virada de chave: “segurança urbana não se faz com mais câmeras, mas com mais gente nas ruas”. Espaços mistos — que combinem moradia, lazer, comércio e cultura — trazem vida em diferentes horários e inibem a criminalidade. “O Centro de Anápolis ainda morre à noite. Precisamos criar usos noturnos, gastronômicos e culturais para mudar isso", destaca.
Mas talvez o ponto mais delicado do debate seja a gentrificação. Para a arquiteta, o projeto precisa ser desenhado para não expulsar quem já vive, trabalha e frequenta o Centro. “Os ambulantes, os estudantes, os pequenos comerciantes - essa gente é a alma do Centro. Requalificar sem incluir é maquiar, não transformar", frisa. Alcantara cita Medellín, Lisboa e Recife como cidades que combinaram requalificação física com programas sociais e garantias de permanência.
A proposta da arquiteta é que o Centro de Anápolis se transforme num “piloto de boas práticas urbanas”, com capacidade de inspirar outras regiões da cidade. Mas isso exige planejamento de longo prazo e ações articuladas. “Cidades são organismos vivos. Cada intervenção impacta o todo. O sucesso do Centro vai depender da nossa capacidade de pensar além do imediatismo e planejar com visão de futuro.”
Por fim, ela reforça que o projeto tem tudo para colocar Anápolis no mapa das cidades que apostam num urbanismo humano e resiliente. Mas o risco de fracasso também existe e mora no descuido com detalhes que parecem menores. “A sombra, o banco confortável, a água potável, o espaço para todos. Isso é que transforma uma rua em lugar. Sem isso, o centro pode até ficar bonito. Mas vai continuar vazio", pondera.
O edital do concurso nacional para a requalificação do Centro de Anápolis foi publicado no último dia 22 de abril. As propostas devem ser apresentadas até 24 de junho, com divulgação dos resultados prevista para 9 de julho e homologação final em 20 de agosto. O vencedor receberá premiação de R$ 250 mil, além de ser responsável pela elaboração do projeto executivo. A iniciativa prevê intervenções no chamado quadrilátero central, com foco na ampliação das calçadas, estímulo à mobilidade ativa, valorização da memória urbana e reorganização de espaços de convivência, comércio e circulação.