Na segunda parte da reportagem sobre como Anápolis se insere no mercado de créditos de carbono [fator relevante na busca da redução de emissão de gases poluentes que agravam o efeito estufa e acelera as mudanças climáticas], o DM Anápolis ouve o especialista ambiental, Antônio El Zayek, consultor e autoridade reconhecida nessa área.
O especialista já ocupou a Diretor de Recursos-Hídricos, Preservação e Conservação Ambiental na Prefeitura de Anápolis entre 2017 e 2018, oportunidade em que desenvolveu o Programa Pró-Água, ganhador do Prêmio CREA de Meio Ambiente. É consultor de empresas privadas e do setor público, e o responsável pela implementação do Plano de Macrodrenagem em Anápolis.
El Zayek entende que a regulamentação do mercado de créditos de carbono é uma boa notícia, mas que, sozinho, não resolve o problema. “Temos que parar de enrolar e criar a cadeia produtiva da água, remunerar por créditos, mas manter os ecossistemas em pé para que a gente tenha essa continuação da vida”, disse.
Para exemplificar, citou a Austrália que, segundo ele, vive com 400 milímetros de água por ano, “e a gente tem quatro vezes isso na nossa região, e a gente consegue falar que estamos passando problemas de água”. E afirma que, o que falta, é organização e tecnologia, pois já existem soluções ecologicamente viáveis, economicamente sustentáveis, para todos os problemas que nós temos, o que falta é vontade política”. A seguir a entrevista completa.
A regulamentação do mercado de crédito de carbono é uma medida eficaz no processo de contenção do efeito estufa e das mudanças climáticas?
As mudanças acontecem, são naturais, a longo prazo, elas são naturais. Elas estão aceleradas pela forma que nós ocupamos o solo, pela forma que a gente produz, e pela emissão de carbono. Então a as emissões de carbono vão aquecer o planeta e aí temos essas mudanças climáticas. Mas só o carbono não vai resolver. A gente precisa ter ecossistemas que funcionem. Para ficar claro, um exemplo: uma empresa precisa ter capital de giro. O ecossistema é igual. Quanto de capital verde é preciso para que o cerrado funcione. Quanto de Amazônia a gente precisa para que a floresta cumpra o papel dela, que é distribuir água por toda a América Latina? Então, a gente precisa de ecossistemas que funcionem.
[O que é e como funciona o ecossistema]
Serviço ecossistêmico é o que a natureza faz. A floresta crescer e captar carbono, a nascente verter água a as matas fazerem a limpeza do ar. Serviço ambiental é o que o homem faz para que isso aconteça. E nós precisamos pagar por isso mesmo, a economia precisa inserir a dimensão ambiental no contexto da análise econômica. É necessário pagar por isso. Um exemplo bacana: você imagina que a Saneago tire por volta de R$ 20 milhões por mês de Anápolis. O pessoal do Piancó tem várias restrições de uso de água. Quanto que fica para o pessoal do Piancó? Nada. E cada um tem lá 25% do seu investimento em terra, bloqueado pela questão ambiental, mais as APPs [Área de Proteção Permanente]. Então, não é justo que uma população, um lugar pague, ou o produtor pague, para uma coisa que seja benefício de todos. Então é uma proposta em Anápolis criar a cadeia produtiva da água. E pagar por esse trabalho de verter água. Quem produz água é a natureza. A Saneago, trata e serve. O fazendeiro que cerca, cuida, faz a drenagem, ele está fazendo o serviço ambiental. O serviço ecossistêmico é verter água. A Saneago explora isso pela lei do SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação]. É muito claro que ela tem que participar economicamente com isso. Um dos meus sonhos é a gente criar a cadeia produtiva da água em Anápolis e pagar as pessoas por isso, os produtores.
Como Anápolis pode ser inserir nesse processo?
A gente tem alguns cuidados, algumas fraquezas, vamos dizer assim, e fortalezas também. Anápolis, não tem água. Para as mudanças climáticas o risco que a gente corre é de ser um ‘Hotspot Seca’ [hotspots são locais do planeta com uma grande biodiversidade, mas que foram devastados pela ação do ser humano, com impactos no meio ambiente e nos ecossistemas]. Por que isso? A gente recebe água só que veio de chuva. A água que sai do mar tem o isótopo do oxigênio, diferente da água que passa por vegetação. A chuva que chega para nós aqui é só a água que passou por dentro de vegetação. Ela vem por cima da Amazônia, bate nos Andes, quando a face da América Latina está virada para o verão, essa massa de água desce, formando os rios aéreos. É um ciclo formado por pequenos ciclos. Vai chovendo, bombeando, chovendo, bombeando, até chegar na gente aqui. Então, é extremamente importante a manutenção das florestas em pé para que a gente tenha água chegando aqui. Pagar por floresta em pé, crédito de carbono, importante para nós aqui do centro Oeste.
[Cidade na região das nascentes]
Anápolis é uma é uma cidade bastante peculiar em relação à água. Anápolis e Cristalina. Porque ela cresceu na região das nascentes, e pega a água de outra cidade e bombeia para trás. Mas em compensação, às outras cidades, Anápolis tem quatro APAs (Área de Proteção Ambiental: Caldas, Piancó, do Antas e João leite. Porque como a gente nasceu na região das nascentes, a cidade cresceu, então várias cidades dependem da água, das nascentes daqui. Então eu acho que a gente pode sim se inserir pelo contexto do carbono, mas seria muito mais interessante para Anápolis se se inserir pelo contexto da água. Pelas duas coisas, pois quando você vai manter toda a mata ciliar, as florestas de galerias, as reservas, para poder fazer essa drenagem e manter essas nascentes vivas, a gente tinha que receber por isso. Em 2021, quando tive acesso, pela APA do João leite a Saneago fazia R$ 60 milhões por mês. É necessário a gente pensar na natureza como um todo. Sequestro de carbono, às vezes árvores de corte também contam, porque ela está tirando carbono da atmosfera. A plantação de eucalipto vai sim sequestrar carbono, e florestas que vão ser permanentes, perenes, elas têm uma pontuação melhor. [...] O Cerrado é a caixa d’água do Brasil.
Quais setores podem participar deste processo?
Oferece para todo mundo. Você tem desde quem regulamenta, a quem compra crédito de carbono, e quem vende. Todos os setores vão poder se se beneficiar com isso. Você tem aí produtores rurais, tem bastante terra em Anápolis, tem bastante gente que mantém floresta. Tem uma parte da [Fazenda] Santa Branca que é toda de Anápolis e apesar de parecer um pouco longe, está com floresta enão recebe nada por isso. Vai ter a oportunidade de produtores rurais e empresas a participarem disso.
Que papel tem o poder público neste processo? E a iniciativa privada?
O poder público ele pode participar é de várias maneiras. Desde a da busca do crédito para florestas que estejam em áreas públicas, até como estimulador do processo. Gosto muito de falar que o poder público tem que ter uma ação de representação da coletividade. O empresário quer ganhar lucro. E é legítimo. Cabe ao poder público defender o interesse comum. Então, dentro de todo esse processo, qual que é o interesse comum? Nós queremos áreas verdes, nós queremos é ter qualidade de vida? Então, tudo que o poder público puder participar, dentro do processo, para representar a coletividade, tanto como sequestrador de carbono, em áreas que puder ser feito, quanto estimular o processo também.
Que ‘moedas’ Anápolis tem para participar deste mercado?
Tem várias moedas. Tem desde o comprador de crédito de carbono, que são empresas que estão aí dentro, e da produção. Tem áreas que podem ser implantadas, florestas que vão poder ser contabilizadas. Não sei como é que ficaram os outros biomas, porque se medir por metro quadrado de carbono concentrado, o cerrado perde para floresta. Mas a função ecossistêmica do cerrado, para nós, é extremamente importante. Tem que ver como é que vai ser medido. Por isso que eu gosto de pensar na água, porque a água, se você falar em mudança climática, é o que sofre com a tecnologia high tech. Está chovendo no deserto, teve inundação no sul, nós passamos pela maior seca dos últimos 75 anos, o perigo da nossa região é ‘hotspot seca’, o perigo do mar subir e inundar alguma cidade. Então a gente está sempre falando de água também quando a gente fala de mudança climática.
As áreas verdes que Anápolis tem, são relevantes nesse processo?
Sim. As áreas verdes de Anápolis, tanto particulares quanto públicas, são relevantes no processo. Você pode contabilizar. Tem uma necessidade de regulamentar melhor os outros biomas, como havia falado, as veredas, o cerrado stricto sensu, os campos, todos tem função ecológica. E principalmente em relação à água. Em termos de carbono, vai concentrar um pouco menos ali, mas tem outras funções. Nessa perspectiva, a gente olhar só pelo carbono fica uma ótica torta.
Quais as maiores preocupações que Anápolis oferece que, eventualmente, colaboram para afetar o clima?
Olha, a maior preocupação em Anápolis, são as secas. Apesar da gente ter problemas com enchentes, a gente não tem nem rio direito, porque a gente cresceu na região das nascentes. As enchentes são exclusivamente pela forma errada de ocupar o solo. Nós não temos outro motivo, a gente impermeabilizou tudo, as chuvas estão aumentando a densidade dela e a cidade é inundada. A gente já tem uma restrição de água. Por exemplo, Daia (Distrito Agroindustrial de Anápolis). O Daia 2, que ainda não tem nenhuma empresa lá, não tem energia, não tem água. Então não adianta criar expectativas se não resolver esses problemas. Repito, nossa água chega é pelos rios aéreos, vem da Amazônia, chegam pelos rios aéreos. A forma que a natureza tem de guardar isso é no lençol freático. A Saneago fala de fazer um lago, e isso é muito mais político do que técnico. Não tem profundidade para guardar grande quantidade de água. E a gente teria que fazer drenagem por percolação na região ocupada, tanto nas regiões que são ocupadas por lavoura quanto pela cidade. A gente tem que pensar nisso, e o Daia também. O Daia cerca a água em Leopoldo de Bulhões, e bombeia para trás. Então, de novo, quem recarrega essas nascentes que estão sendo cercadas lá é a área ocupada.
[Erosões são frutos da impermeabilização do solo]
E aí nós temos que pensar. Anápolis tem outro problema grande demais. Tem 28 grandes erosões causadas por essa água que a gente não deixou entrar no solo. Tem vários problemas ambientais, que às vezes não são nem citados. A previsão é passar por grandes estiagens. Então o nosso trabalho é tanto brigar pela manutenção do ciclo da água que vem da Amazônia e chega até a gente, quanto na manutenção desse serviço ecossistêmico dentro do município. Ressaltar aqui a importância de a gente inserir a dimensão ambiental dentro da análise econômica, porque sem água não tem economia. E você pega toda a APA do Rio João leite, o próprio Piancó e outras aí da cidade, que elas têm restrição de uso por causa da água. E a água hoje tem um valor econômico muito grande. Água mineral, por exemplo, é mais caro que gasolina. Você vai comprar na loja de conveniência do posto, vai pagar aí R$ 3 ou R$ 4 por 500 mls, enquanto a gasolina está a metade do valor da água por litro.