Patrimônio mundial cultural desde 2017, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, na região portuária do Rio de Janeiro, corre o risco de perder o título, apontaram participantes de audiência pública da Comissão Mista Permanente sobre Migrações Internacionais e Refugiados (CMMIR), nesta sexta-feira (22). Segundo pesquisadores e representantes do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, o governo federal descumpre determinações da Unesco e nem sequer conta com plano de gestão e conservação do local.
O cais foi o principal porto de entrada de africanos escravizados na América Latina e se tornou ponto de encontro da comunidade negra na então capital federal. O procurador Sergio Gardenghi Suiama relatou na audiência que o Comitê Gestor do sítio arqueológico criado em 2018 se reuniu apenas duas vezes e foi extinto por um decreto do presidente Jair Bolsonaro, em 2019. O funcionamento do comitê é uma exigência da Unesco para que o sítio arqueológico mantenha o título de patrimônio mundial. Além disso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a União ainda não apresentaram um plano de gestão para o espaço, afirmou o procurador.
Em decisão da semana passada, a Justiça Federal deu 30 dias para que o comitê gestor comece a funcionar e determinou que o Iphan apresente um cronograma de trabalho em 60 dias. De acordo com Suiama, o órgão quer excluir a sociedade civil do comitê. A falta de um plano de gestão, segundo ele, acarreta problemas na conservação do Cais do Valongo e na partilha do valor cultural com a comunidade da região.
— Falta gestão. Não há hoje um órgão responsável por gerir o patrimônio mundial Cais do Valongo. A posição do Iphan, infelizmente, é lamentável. Buscam alterar uma regra acordada com a Unesco no meio do jogo. Querem negar a participação da sociedade civil — apontou o representante do Ministério Público Federal.
Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU), Rita Oliveira afirma que o abandono do Cais do Valongo pelo governo federal é mais um exemplo da política de desvalorização da população negra.
— O estado brasileiro passou a colocar em risco a manutenção do título. No centro desse imbróglio temos um contexto ideológico muito hostil à valorização da cultura e da história negra. País que não reconhece sua memória é um país sem alma — disse.
De acordo com o antropólogo Milton Guran, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a atual gestão da prefeitura do Rio de Janeiro tem feito o possível dentro de suas limitações, mas a gestão anterior, do prefeito Marcelo Crivella (2017-2020), deixou o local abandonado. O espaço, relatou Guran, era habitado por pessoas em situação de rua e sofria com vandalismo, além de alagamentos. O antropólogo também disse que o instituto responsável pelo patrimônio histórico e artístico nacional atrapalha investimentos na região.
— Com esse novo governo, a prefeitura começa a se movimentar, mas a prefeitura só pode varrer e iluminar. Não pode fazer mais nada porque o Iphan barra. Todas as possíveis melhorias de conservação que poderiam ser feitas estão paradas. Tem dinheiro, cerca de US$ 1 milhão [de fundos internacionais], tem equipe, e o Iphan não aprova — criticou Guran, que ressaltou o potencial turístico da região.
Milton Guran, Rita Oliveira e outros participantes manifestaram apoio ao projeto do senador Paulo Paim (PT-RS) que estabelece diretrizes para a preservação do Cais do Valongo e seu entorno, região conhecida como Pequena África (PL 2.000/2021). A proposta também define fontes de recursos para sua manutenção e custeio, além de tratar da execução de projetos que valorizem a contribuição dos africanos na constituição da nação brasileira.
Presidente do colegiado, Paulo Paim afirmou que vai mobilizar a Comissão Mista Permanente sobre Migrações Internacionais e Refugiados, a Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH) e parlamentares para buscar recursos para o Cais do Valongo.
— Vamos tentar aprovar alguma emenda parlamentar coletiva para tentar contribuir nesse sentido. Percebo que muitos movimentos para outra áreas são feitos, mas quando é a para a cultura negra, para a história do povo negro, tudo é dificultado — lamentou o senador.
O Cais do Valongo foi encontrado em 2011 durante escavações feitas nas obras de reforma da zona portuária. As ruínas são os únicos vestígios materiais da chegada dos africanos ao país. Ao ser nomeado patrimônio mundial, o Cais do Valongo foi colocado no mesmo patamar de outros lugares reconhecidos pela Unesco como locais de memória e sofrimento, como um memorial em Hiroshima, no Japão, pelas vítimas da bomba atômica, e o Campo de Concentração de Auschwitz, local de extermínio de judeus na Polônia.
De acordo com Monica Lima e Souza, coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a candidatura do Cais do Valongo foi resultado de uma articulação do poder público com a população da região portuária e do movimento negro. A preservação dessa memória e a valorização da história dos africanos que foram trazidos ao Brasil é fundamental na visibilidade da negritude brasileira, em sua reparação histórica e na luta antirracista, apontou a pesquisadora.
— Essa verdadeira história brasileira precisa ser conhecida. A história das nossas relações com o continente africano nos trouxe muitas riquezas, mas é marcada pela injustiça histórica. Precisamos reparar essa injustiça — apontou.